O artigo “Direct detection of early-stage cancers using circulating tumor DNA”, publicado há poucos dias na Science Translational Medicine, tem como um dos autores o brasileiro Alessandro Leal. Ao lado de pesquisadores americanos, dinamarqueses e holandeses, o oncologista membro da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) desenvolveu uma técnica denominada targeted error correction sequencing (TEC-Seq) ou sequenciamento com correção do erro. A novidade representa um avanço em relação à tecnologia disponível no mercado hoje para análise genética dos tumores.
Leal é de Brasília (DF) e está no terceiro ano de sua pós-graduação em Cellular and Molecular Medicine, na Johns Hopkins School of Medicine, um dos maiores programas de pesquisa translacional dos Estados Unidos. Nesta entrevista exclusiva, o oncologista explica como foi desenvolvida a prova de conceito da TEC-Seq, comenta os principais resultados do estudo e opina sobre a importância da técnica para o diagnóstico precoce de câncer e para a classificação da doença não metastática. Tudo isso a partir de um procedimento não invasivo, que é a biópsia líquida. Leia a seguir.
Como resumiria sua trajetória profissional até aqui?
Eu me formei pela Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília em 2004. Após minha graduação, fui para São Paulo, onde fiz residência em Medicina Interna pelo Hospital Central da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo – ISCMSP e residência em Oncologia Clínica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – HCFMUSP/Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – Icesp. Após terminar a residência, recebi um convite do professor Paulo Hoff e do colega Gustavo Fernandes para ajudar na implantação de um novo centro de oncologia do Hospital Sírio-Libanês em Brasília. Durante os quase cinco anos de trabalho assistencial naquela instituição, foquei minha atenção em câncer de mama, melanoma e tumores cerebrais. Durante o mesmo período, tive a oportunidade de concluir o mestrado em Ciências Genômicas e Biotecnologia pela Universidade Católica de Brasília, além de obter a certificação americana chancelada pelo ECFMG (Educational Comission for Foreign Medical Graduates). Com a finalidade de continuar os meus estudos em biologia do câncer, em 2014 resolvi me candidatar a uma vaga regular de PhD em uma universidade americana. Preparei minha candidatura por meio de testes padronizados, currículo e cartas de recomendação para Johns Hopkins University, Weill-Cornell University, Tuffts University, University of North Carolina at Chapel Hill e University of Texas – MD Anderson Cancer Center. Acabei sendo aceito por todas elas, mas optei por seguir meus estudos na Johns Hopkins School of Medicine pela sua tradição em genética de câncer. Hoje estou no terceiro ano do meu PhD em Cellular and Molecular Medicine, reconhecido pelo NIH como o maior programa de pesquisa translacional dos Estados Unidos, que admite em média 20 candidatos a cada ano.
Como surgiu a ideia de realizar o estudo e quando e onde foi iniciado?
Sabíamos que tínhamos desenvolvido um excelente teste de sequenciamento, bastante sensível e específico. Os primeiros experimentos foram conduzidos em linhagens celulares, sob diversas diluições, com dados de frequências mutacionais conhecidos, com a finalidade de se aprimorar a técnica de captura e os algoritmos de análise. Sempre foi interesse do grupo testar essa tecnologia em uma população de pacientes com câncer em estágio inicial, em que a probabilidade de se detectar DNA tumoral circulante no plasma é infinitamente menor, haja vista que estamos falando de baixíssimas frequências alélicas mutacionais (em alguns casos, apenas 0,05% a 0,1% de todo o DNA livre no plasma provém do tumor). Os primeiros pacientes começaram a ser recrutados em 2013 e conseguimos fechar toda a população em dois anos de trabalho, graças à colaboração de um outro centro de pesquisa nos Estados Unidos, a Universidade da Califórnia – San Diego, e outros dois na Europa, Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e Universidade de Amsterdã, na Holanda.
Poderia explicar a targeted error correction sequencing (TEC-Seq)?
Trata-se de um sequenciamento-alvo com correção do erro. Já existe há algum tempo no mercado o teste de sequenciamento-alvo, ou targeted sequencing, o que nada mais é do que o sequenciamento de um pool de genes que se deseja analisar. Essa técnica se dá por meio de captura híbrida, isto é, são adicionados oligonucleotídeos ao tubo de ensaio para que se selecione apenas os genes de interesse. O que trouxemos de novo foi a correção do erro. É preciso ser dito que antes de uma amostra ser sequenciada, o DNA precisa ser amplificado em duas fases: na preparação da biblioteca genômica (todo o DNA livre no plasma é amplificado milhares de vezes) e durante a preparação da biblioteca-alvo (após a captura dos genes de interesse). A amplificação do DNA se dá por meio da reação de polimerase em cadeia (PCR), um procedimento que está sujeito a uma taxa de erro da ordem de 0,1% a 1% a depender dos kits comercialmente disponíveis. Se esses erros não forem devidamente filtrados, podem ser erroneamente interpretados como uma mutação própria do tumor. O que fizemos de diferente foi adicionar oito códigos de barras exógenos (oligonucleotídeos sintetizados in vitro, com sequência conhecida), às extremidades 3’ e 5’ de cada fragmento de DNA livre de célula. Esse passo, aliado a uma cobertura extremamente alta (cada fragmento de DNA foi lido em média 30.000 vezes), nos deu a chance de reconciliar as sequências eliminando os artefatos produzidos durante as fases de preparação das bibliotecas. Assim, apenas os fragmentos que continham a mesma sequência de nucleotídeos e a mesma alteração (mutação pontual), para um determinado código de barra, foram utilizados na fase de realinhamento das sequências. O estudo demonstra que a taxa de erro do nosso método é muito inferior à tecnologia convencional de sequenciamento hoje disponível no mercado.
Como poderíamos resumir os principais resultados do estudo?
A análise das amostras de 200 pacientes com câncer colorretal, de mama, pulmão ou ovário detectou mutações somáticas no plasma em 71%, 59%, 59% e 68% dos pacientes, respectivamente, com doença de estágio I ou II. Vale ressaltar que esse já era o número esperado de casos a serem detectados com o nosso painel de 58 genes, baseado na análise in silico que fizemos com os dados da base COSMIC. Esse estudo é uma prova de conceito para se avaliar a sensibilidade e acurácia da tecnologia, e não para se basear no painel de genes como uma forma final de exame clínico. Mesmo analisado de forma independente, o DNA tumoral circulante apresentou alta concordância com os tumores desses pacientes no que diz respeito às mutações encontradas. De modo bastante interessante, o estudo também mostrou que, em pacientes com câncer colorretal ressecável, uma frequência alélica mutacional superior a 2% no plasma antes da cirurgia esteve associada a uma maior chance de recorrência e morte por câncer colorretal. Outro dado paralelo do estudo, mas não menos interessante, é a análise do plasma de 44 indivíduos saudáveis, em que pudemos identificar alterações genômicas relacionadas à hematopoiese clonal em 16% de indivíduos assintomáticos, mas sem qualquer alteração nos genes relacionados ao desenvolvimento dos diferentes tumores epiteliais testados nesse estudo.
O que espera de repercussão e mudanças na prática clínica a partir desses resultados?
Esse não é um estudo que irá mudar a prática clínica em curto prazo. É uma prova de princípio. É um estudo que abre um novo caminho para se fazer diagnóstico precoce de câncer por meio de uma tecnologia não invasiva e também uma nova forma de se classificar a doença não metastática. Não há dúvida que a classificação TNM baseada pura e simplesmente em imagem está com os seus dias contados. A quantidade massiva de novos estudos em desenvolvimento no campo das biópsias líquidas irá consolidar a análise do DNA tumoral circulante como um novo fator prognóstico do câncer ao longo da próxima década. É só uma questão de tempo.
Como se sente participando de uma pesquisa tão relevante para o futuro da medicina e da oncologia clínica?
Sou muito grato a todos que sempre abriram as portas para que eu pudesse executar meu trabalho com qualidade, seja como médico assistencialista ou pesquisador. Aqui nos Estados Unidos fico feliz em fazer parte de um time de mentes brilhantes, que já está buscando respostas para algumas das questões que não pudemos resolver nesse estudo. Os próximos capítulos dessa história serão certamente melhores.