“Minha primeira cama foi uma tampa de mala velha em cima de um fogão”, conta o Dr. José Carlos do Valle, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) de 1989 a 1991. O médico de 1,90 metro e 77 anos emocionou-se ao ser homenageado na Assembleia da SBOC, durante o XX Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica (25 a 28 de outubro, no Rio de Janeiro). O filho único de pais pobres, cuja trajetória profissional remete ao desenvolvimento da própria oncologia no Brasil, conta que foi difícil dormir naquela noite. “É com uma imensa alegria que testemunhei esse Congresso extraordinário e a SBOC tão pujante”, orgulha-se.
A semente, como gosta de dizer, foi plantada por ele e outros sete especialistas em 1979, durante uma jornada de quimioterapia antineoplásica em Porto Alegre. A SBOC viria a ser fundada oficialmente dois anos depois. O Dr. José Carlos passou por quase todos os cargos da diretoria até ser eleito o seu quinto presidente. Havia outros quatro candidatos virtuais, mas ele clamou pelo consenso. Os demais abriram mão e o apoiaram justamente pelo seu perfil conciliador. Esta qualidade o ajudou a articular o primeiro convênio entre a SBOC, a Sociedade Brasileira de Cancerologia e a Associação Médica Brasileira para a concessão do Título de Especialista. Referindo-se ao reconhecimento da oncologia clínica como especialidade, ocorrido este ano, ele é direto: “Finalmente conseguimos nos libertar desse grilhão”. Na época, a oncologia clínica era área de atuação da cancerologia. Assim, o primeiro concurso de proficiência para obtenção do Título ocorreu durante o VII Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, presidido por ele em agosto de 1991.
Dezessete meses antes, o evento correu sério risco de cancelamento. O governo Collor confiscou os ativos bancários de boa parte dos brasileiros, incluindo os recursos da SBOC, que tinha 300 associados. “Precisávamos fazer o Congresso e corri feito um desesperado para conseguir financiadores”, lembra o Dr. José Carlos. Deu certo. O encontro reuniu 700 participantes e teve 12 conferencistas internacionais. “Foi uma das edições mais lembradas por muito tempo”, diz.
Uma decisão para sempre
A vida do oncologista clínico – que quase foi pianista profissional – é assim: pautada por desafios e superação. Aos nove anos, foi inquirido pela mãe a respeito de seu desempenho medíocre na escola. A conversa foi sobre os sacrifícios dela, costureira, e do pai, mecânico autodidata e tratorista, para garantir seus estudos. O menino de Nova Iguaçu (RJ) decidiu, então, que seria o primeiro aluno enquanto estudasse – o que conseguiu cumprir até a conclusão do curso científico da época. Chegou a ter dúvidas em relação a qual carreira escolher. Manteve a música como hobby, assim como o mergulho com garrafa e a fotografia submarina. No acidente com uma lancha durante um mergulho, teve amputado um dedo da mão esquerda, reimplantado no mesmo dia, o que prejudicou muito a destreza para tocar. Mas ainda conserva em lugar de destaque o piano preto de meia cauda. “Olho para ele todo dia. Ali ficaram por uma semana as flores que recebi na homenagem da SBOC.”
A oncologia surgiu em sua vida quase por acaso. Após ser aprovado com nota máxima no concurso para professor livre-docente de Clínica Médica na UniRio, em 1971, tornou-se o primeiro a deter esse título no Instituto Nacional de Câncer (Inca). O Dr. Moacyr Alves dos Santos-Silva, figura emblemática da oncologia, então diretor do Inca e 22 anos mais velho que ele, ficou entusiasmado com a conquista e o convidou para ser o chefe do Departamento de Clínica Médica, que abrangia também o CTI, a Pediatria, a Hemoterapia e a Oncologia Clínica. “Eu não sabia quase nada de câncer. Forcei-me a estudar a cancerologia para poder exercer com qualificação a chefia daqueles profissionais”, revela. “Fiquei apaixonado pela especialidade, que abracei e tornei minha também.”
Dentre suas muitas realizações, lembra com carinho do período de 1979 a 1985, quando esteve à frente do Hospital de Oncologia, então o único hospital oncológico do Inamps (atual Inca II), e também da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Nova Iguaçu, que ajudou a fundar e da qual foi professor titular de Clínica Médica e Oncologia por 13 anos. Dedica-se com entusiasmo desde 2006 à Academia Nacional de Medicina, a mais antiga instituição cultural do país, onde é membro titular e frequenta as tradicionais reuniões das quintas-feiras, religiosamente. É o atual presidente da Secção de Medicina. “Sinto minha missão completa”, finaliza.
Em reconhecimento a atuações como a do Dr. José Carlos do Valle, a SBOC aprovou a criação do seu Conselho de Ex-Presidentes. As reuniões serão periódicas e terão como objetivo reforçar os propósitos e as reflexões que norteiam a Sociedade.