Diversos fatores estão relacionados ao desenvolvimento de tumores, dentre eles o consumo exagerado de álcool, o vírus HPV e a exposição excessiva a raios solares. Entretanto, nenhum desses fatores é tão lembrado pelos brasileiros quanto os hereditários – alterações genéticas que são passadas dos pais para os filhos e, hoje, estão comprovadamente associadas a um em cada dez casos de tumores malignos diagnosticados. De acordo com levantamento da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), 84% das pessoas relacionam o câncer à hereditariedade, sendo o segundo fator mais lembrado de todos, atrás apenas do tabagismo.
O nível de conscientização da população sobre os fatores que causam em torno de 10% dos casos de câncer é um dado positivo. Entretanto, de acordo com o Dr. Rodrigo Guindalini, membro da SBOC, as boas notícias precisariam ser acompanhadas de investimentos substanciais em Oncogenética – área que estuda a relação entre fatores genéticos e o desenvolvimento de tumores – e na disponibilização de suas conquistas à população. Segundo o especialista, a oferta de testes genéticos ainda é incipiente, sendo que grande parte dos brasileiros atualmente não tem acesso a exames que podem levar a estratégias de vigilância e redução de risco de câncer muito mais efetivas e personalizadas. Em alguns casos, medidas que podem ser recomendadas após esses exames – como a mastectomia profilática ou a quimioprevenção – reduzem o risco de câncer em mais de 90%, por exemplo.
“Nos últimos anos, surgiram iniciativas tratando da cobertura de testes genéticos por planos de saúde. Desde 2014, o rol de cobertura obrigatória contempla a investigação diagnóstica para as principais síndromes de câncer hereditário – como a síndrome de câncer de mama e ovário hereditário – e essa cobertura vem sendo ampliada a cada atualização da lista, que ocorre de dois em dois anos. Porém, ainda há melhorias a serem realizadas, como, por exemplo, a inclusão dos genes POLE e POLD1 na pesquisa de polipose colônica – uma doença hereditária que se caracteriza pelo crescimento desordenado de células de tecido na parede do cólon e que pode levar ao surgimento de um câncer”, diz o Dr. Guindalini.
Além disso, segundo o especialista, os critérios clínicos obrigatórios para cobertura dos testes ainda são restritivos e necessitam de aperfeiçoamento. “Com as regras atuais, não é permitido iniciar a investigação diagnóstica para pessoas que ainda não desenvolveram câncer e pertencem a uma família de alto risco. Esta limitação, em famílias nas quais todos os pacientes diagnosticados com câncer já faleceram, inviabiliza a utilização de testes para pessoas que poderiam se beneficiar de estratégias de prevenção primária. Outro entrave é que a aprovação da solicitação dos testes genéticos pelas seguradoras/operadoras foi limitada a poucos profissionais da área médica, excluindo, por exemplo, os oncologistas clínicos. Esta determinação compromete sobremaneira o acesso da população conveniada às novas tecnologias”, explica.
Para o Dr. Guindalini, também é fundamental discutir as dificuldades que a população enfrenta para ter acesso a esses exames de Oncogenética na saúde pública. “A situação é ainda mais complicada e desafiadora no SUS. Existem poucos centros de referência com profissionais capacitados para realização do aconselhamento genético a pacientes com câncer. Dentre esses centros, poucos possuem laboratórios equipados e pessoal treinado para realização e interpretação de exames de biologia molecular. E, nos raros estabelecimentos onde as condições para o aconselhamento genético são adequadas, não há financiamento governamental previsto para cobertura desses testes genéticos para a população de risco. Portanto, é crucial que seja estabelecido um plano nacional articulado entre os órgãos governamentais e centros acadêmicos para criação e implantação do aconselhamento genético para pacientes de alto risco oncológico com o objetivo de garantir a universalidade do acesso às estratégias personalizadas de rastreamento e redução de risco de câncer advindos dos conhecimentos da Oncogenética”, finaliza.
A Dra. Clarissa Baldotto, diretora da Sociedade, ressalta que parte da solução para o problema do acesso dos brasileiros aos avanços da Oncogenética envolve também novos investimentos e incentivos para a formação de especialistas. “Mais da metade dos médicos geneticistas do Brasil estão na região Sudeste. Isso quer dizer que, mesmo com um investimento maciço de verbas em exames e acompanhamento, não haveria profissionais em número suficiente em todo o País para implantar as medidas. Para dar ao câncer hereditário a atenção necessária, é crucial que sejam feitos mais investimentos públicos e privados destinados a despertar o interesse de cada vez mais profissionais pelo tema. Na SBOC, lançamos no ano passado um programa para residentes em Oncologia Clínica realizarem um treinamento internacional em Oncogenética. Apenas com medidas como essa haverá um aumento na massa crítica de profissionais que poderão atuar efetivamente para prevenção, redução de risco, diagnóstico e tratamento do câncer hereditário”, finaliza Baldotto.
Lacunas na saúde pública, lacunas na educação da população
Enquanto a importância que a população destina à hereditariedade no desenvolvimento de tumores é positiva, o levantamento da SBOC mostrou que a mesma atenção não é dada a outras causas, como hábitos de vida e fatores ambientais. “O que é passado hereditariamente é importante para entendermos o desenvolvimento da doença, mas é apenas uma peça em um quebra-cabeça muito mais complexo. Outros fatores, como a ingestão exagerada de bebidas alcóolicas, exposição excessiva ao sol, doenças sexualmente transmissíveis também são chave para entender a incidência do câncer no Brasil, mas essas causas são ignoradas por pelo menos dois em cada dez brasileiros como questões que podem causar um tumor. Os números são muito altos e demonstram que grandes esforços ainda precisam ser feitos para conscientizar a população”, salienta Baldotto.