Em dois anos, 48 medicamentos para tratamento de câncer foram descontinuados no Brasil.
Nos últimos anos, e com frequência significativa, os pacientes com câncer têm enfrentando problemas com a descontinuidade de medicamentos. A baixa disponibilidade ou mesmo a não oferta de medicamentos nos mercados nacional e internacional se configura um problema de grande dimensão devido ao impacto na qualidade e segurança da assistência.
Um estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Farmacêuticos em Oncologia (Sobrafo), mostra que, em dois anos, 48 medicamentos para tratamento de câncer foram descontinuados no Brasil. Desse número, quase 20% foram descontinuados definitivamente. A classificação segue norma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e é definida pelo detentor do registro do medicamento no Brasil no ato de sua comunicação à agência. O detentor do registro informa se trata-se de uma situação de suspensão temporária da fabricação ou importação do medicamento, quando este não tem a intenção de cancelar o registro do produto; ou se é definitiva, como nos casos em que há a intenção ou de cancelar ou de não renovar o registro do produto junto à Anvisa.
Em 50% dos casos, as descontinuidades de medicamentos foram motivadas por questões comerciais. As outras razões se referem a mudanças no local de fabricação, problemas com o princípio ativo da droga, questões de logística, entre outras.
Especialmente na oncologia, há uma grande preocupação com essa situação, pois o atraso do tratamento ou sua interrupção pode acelerar o crescimento do tumor e reduzir as chances de cura. De acordo com a Dra. Elaine Lazzaroni Moraes, vice-presidente executiva da Sobrafo, a descontinuidade de um antineoplásico diminui as alternativas terapêuticas para prescrição médica e gera a necessidade de adequação dos regimes quimioterápicos. “Tal ausência poderá suscitar a necessidade de substituições por medicamentos ou mesmo de protocolos que não seriam a primeira escolha de tratamento, colocando em risco a segurança do paciente e os resultados esperados”, afima a especialista em Farmácia Hospitalar. Além disso, o desabastecimento pode aumentar os custos dos tratamentos devido às aquisições de alternativas existentes no mercado, na maioria das vezes, de valor superior ao medicamento descontinuado.
A norma da Anvisa sobre a descontinuidade de medicamentos estabelece que o detentor do produto avise com pelo menos 180 dias de antecedência sobre a descontinuidade. Quando o produto impacta no mercado, o prazo para aviso é de um ano de antecedência. Segundo a Dra. Elaine, esse prazo não atende a necessidade de avaliação detalhada, caso a caso, tampouco possibilita a definição de ações e a obtenção de resultados que evitem os potenciais impactos da ausência do produto no mercado. “A comunicação antecipada de um ano para medicamentos únicos no mercado nacional não permite a tomada de decisão sobre estratégias para evitar a desassistência dos pacientes, como por exemplo, a transferência de registro para outro detentor interessado, a nacionalização da produção no país pela indústria pública ou privada, ou a aprovação acelerada do registro de um produto substituto contendo o mesmo fármaco”, explica.
E um dado relevante do estudo realizado deixa o cenário ainda mais preocupante: ceca de 20% dos medicamentos antineoplásicos descontinuados não têm substitutos no mercado brasileiro no momento de sua descontinuação. O que prejudica totalmente a escolha de tratamentos quimioterápicos pela falta do produto, deixando os pacientes “órfãos” de tratamento.
Paradoxo
Algumas drogas descontinuadas permanentemente foram desenvolvidas a partir dos anos 1950, não possuem patente e, por serem baratas, a indústria não tem mais interesse em produzí-las. E, ao mesmo tempo, novas drogas possuem um custo muito alto.
O presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Dr. Sergio Simon, disse que esse desinteresse dos laboratórios pela fabricação de medicamentos mais antigos e baratos já aconteceu em outros países, mas que é preciso agir junto aos fabricantes para evitar o sumiço dos medicamentos, que são eficientes. Inclusive, em fevereiro do ano passado, algumas sociedades médicas em conjunto, incluindo a SBOC, assinaram uma carta aberta pedindo maior empenho do governo, indústrias farmacêuticas, sociedades especializadas e sociedade civil para que sejam tomadas medidas efetivas contra a falta de medicamentos oncológicos. “Muitos produtos têm um valor baixo e estão saindo do mercado por falta de interesse comercial e empenho do governo para organizar os suprimentos desses produtos de forma estruturada. Os tratamentos que substituem essas medicações antigas e eficazes são mais caros e não cabem dentro daquele custeio que é encaminhado pelo Ministério da Saúde, então a ideia do alerta é de tentar prevenir um desabastecimento maior que venha a nos forçar a comprar coisas mais caras para tratar as mesmas doenças”, diz Dr. Sergio.
O que pode ser feito?
Como a motivação comercial foi a principal justificativa utilizada pelos detentores de registro para a descontinuação de medicamentos antineoplásicos no país, existe a necessidade de estudar e mapear as especificidades do mercado farmacêutico em oncologia para assim propor estratégias que possam mitigar tal situação.
De acordo com a vice-presidente da Sobrafo, a minimização do desabastecimento passa, dentre outras questões, por discussões sobre o modelo industrial do país. “A indústria farmacêutica nacional é dependente do fornecimento de insumos farmacêuticos e de medicamentos elaborados provenientes do mercado externo. Somado a isso, o marco regulatório sanitário mostra-se fundamental, a fim de definir prioridades em saúde e dar mais celeridade ao registro de produtos destinados às demandas não atendidas pelo mercado brasileiro”, conclui Dra. Elaine.
Também está em análise, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 267/19 que preconiza que medicamentos contra o câncer tenham produção ininterrupta. A proposta pretende obrigar a indústria farmacêutica a manter no mercado terapias essenciais ao tratamento, ainda que elas não sejam mais de interesse econômico para as empresas.
Essa é uma reportagem da revista da SBOC: Oncologia&Oncologistas - edição 9.