Apesar de as diversas Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas do Ministério da Saúde oferecerem um guia para o tratamento do câncer no Brasil, os hospitais são livres para estabelecer seus próprios protocolos de conduta, aprofundando desigualdades no acesso ao cuidado oncológico. Diante disso, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) se aliou ao Ministério Público Federal (MPF) em uma ação civil pública que pode mudar essa realidade.
Autorizada a ingressar no processo na condição de Amicus Curiae ("Amigo da Corte", em latim), isto é, instituição com reconhecida expertise na matéria com a função de fornecer ao juiz subsídios para a solução da demanda, a SBOC apresentou evidências reforçando a existência de impropriedades na sistemática de seleção e financiamento de medicamentos oncológicos destinados aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso porque a oncologia não conta com uma lista de medicamentos que o SUS deve disponibilizar aos pacientes. "Os critérios para a aquisição e a oferta de tratamentos ficarem a cargo dos hospitais gera uma enorme e trágica desigualdade no acesso a eles", denuncia a presidente da SBOC, Dra. Clarissa Mathias.
O modelo ocorre em razão do sistema de remuneração do SUS, em que os hospitais recebem um valor mensal por paciente, dependendo do tipo de câncer tratado, usado para cobrir todos os custos do tratamento, incluindo medicamento, soluções (soro glicosado, fisiológico, eletrólitos etc.), materiais (equipos, luvas, agulhas, máscaras, aventais etc.), impressos, limpeza e manutenção da unidade de quimioterapia, entre outros. "Tais valores muitas vezes sequer são compatíveis com o custo do tratamento de base, e cada hospital acaba trabalhando com um 'cardápio' próprio de medicamentos passíveis de serem prescritos pelo seu corpo clínico. O que está fora desse 'cardápio' simplesmente não é oferecido ao paciente, inclusive medicamentos expressamente incorporados ao SUS", explica o gerente jurídico da SBOC, Dr. Tiago Matos.
Evidências científicas da desigualdade
A desigualdade gerada pelo atual sistema foi demonstrada pelo estudo “Diferenças no tratamento sistêmico do câncer no Brasil: meu SUS é diferente do teu SUS”, publicado na Brazilian Journal of Oncology.
De acordo com levantamentos realizados via Lei de Acesso à Informação, o estudo aponta a existência de três categorias de hospitais no cuidado oncológico: os que oferecem opções terapêuticas melhores do que aquelas preconizadas pelo Ministério da Saúde; os que contam exatamente com as terapêuticas constantes das diretrizes ministeriais; e os que sequer dispõem dos tratamentos previstos. "Dependendo do hospital para o qual o paciente for referenciado, as chances de cura ou o tempo de sobrevida podem ser completamente diferentes", destaca Dra. Clarissa Mathias.
O SUS que queremos
No documento elaborado pela SBOC, a entidade enfatiza "não ser mais aceitável que o Ministério da Saúde, formulador e articulador da política nacional de prevenção e controle do câncer, continue ignorando a existência desse problema ou, ainda que o reconheça, permaneça omisso à tão cruel realidade", e lembra que "ao Poder Judiciário cabe salvaguardar direitos fundamentais coletivos frustrados em função de impropriedades nas políticas públicas implementadas pelo Poder Executivo".
A entidade defende que, até que o Ministério da Saúde estabeleça mecanismos regulatórios adequados, com a devida correção das falhas apontadas, as soluções apresentadas pelo MPF se mostram coerentes e necessárias.
A ação pede que a União seja condenada, por meio do Ministério da Saúde, a selecionar diretamente os novos medicamentos oncológicos a serem fornecidos pelo SUS, abstendo-se de delegar essa competência aos estabelecimentos de saúde habilitados, compartilhando as decisões referentes à seleção e instituindo mecanismos que promovam o acesso igualitário a essas tecnologias. Também pede que a União passe a ser responsável por realizar a compra direta ou pactuar, no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite, o financiamento dos novos medicamentos oncológicos incorporados ao SUS.
Para o diretor executivo da SBOC, Dr. Renan Clara, a participação da entidade na ação civil pública do MPF é um marco da atuação da oncologia clínica brasileira. "O atual modelo de definição das condutas terapêuticas do cuidado oncológico é desigual e injusto, mas pode e deve ser corrigido. Isso está sendo feito com o protagonismo do oncologista clínico brasileiro, que também sofre com esse problema diante do seu paciente, e a SBOC tem orgulho de representá-lo na luta que levará o país a uma realidade mais justa no cuidado oncológico."