O Ministério da Saúde comprou, sem licitação e com base no menor preço, a L-asparaginase chinesa para o tratamento de 4 mil crianças com leucemia linfoide aguda. Médicos brasileiros têm alertado, desde março, que a substância (Leuginase®), do laboratório Beijing SL Pharmaceutical, representado pela empresa uruguaia Xetley S.A., não tem eficácia e segurança comprovadas.
Segundo reportagem do “Fantástico”, da Rede Globo, o Centro Infantil Boldrini, de Campinas (SP), hospital de referência no tratamento de câncer, fez um exame de espectrometria de massas para conhecer a composição da Leuginase®. O medicamento chinês foi analisado pela Laboratório Nacional de Biociências, vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia. O resultado do teste foi posteriormente examinado pelos pesquisadores do Centro Infantil Boldrini, que compararam a Leuginase® à medicação alemã utilizada antes. A análise encontrou uma grande quantidade de impurezas na asparaginase chinesa. Enquanto a droga alemã tem três contaminantes, no medicamento chinês foram encontradas 398 impurezas, ou seja, 130 vezes mais.
De acordo com Antonio Carlos Zanini, ex-secretário nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, ouvido pelo “Fantástico”, o resultado “foge totalmente às normas básicas de produção de um mundo moderno”. “Não se sabe se é seguro. É altamente provável que seja tóxico. Não dá nem para iniciar teste em humano. Deveriam parar imediatamente toda a aplicação porque é extremamente perigoso. Tem o risco de provocar um choque anafilático, uma reação alérgica forte, e a criança morrer, além de não saber se é efetivo”, afirmou ao programa dominical.
A Dra. Silvia Brandalise, oncologista pediátrica e presidente do Centro Infantil Boldrini, disse à reportagem da Globo que a presença das proteínas contaminantes na Leuginase® pode provocar uma produção de anticorpos que destroem a asparaginase. “É uma ação antagônica em relação ao que se pretende, que é uma potencialidade de 100% da asparaginase”, explicou. O Centro Infantil Boldrini encomendou novos testes a universidades brasileiras e a um laboratório norte-americano.
Entrevistada pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), a Dra. Silvia Brandalise apontou uma possível menor biodisponibilidade da droga produzida na China decorrente do excessivo número de contaminantes. “Esses peptídeos contaminantes interferem não somente na imunogenicidade da droga, como possivelmente contribuem para mais efeitos colaterais”, reforçou. “Em decorrência da menor efetividade do esquema terapêutico, sobrarão mais células leucêmicas no organismo do paciente. Com a doença residual mínima (DRM) positiva ao final das quatro primeiras semanas, são maiores as chances de recidiva da doença, com posterior morte do paciente”, alertou.
Contestações
O Conselho Federal de Medicina (CFM) apresentou, em maio, pedido ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para que avalie as denúncias junto ao Ministério da Saúde. Para o Dr. Carlos Vital, presidente do CFM, a medicação anteriormente utilizada, importada dos Estados Unidos e da Alemanha, deve ser retomada em caráter emergencial. “Não se pode expor os pacientes ao risco”, ressaltou.
“Cabe ao CFM zelar pela boa prática da medicina. A recomendação do Ministério da Saúde para se usar este medicamento no combate à leucemia linfoide aguda se traduz como uma grave imperícia”, avaliou a Dra. Brandalise.
Em junho, o Ministério Público Federal recomendou ao Ministério da Saúde a suspensão da compra e distribuição na rede pública da Leuginase®, o recolhimento dos lotes já distribuídos e a aquisição, em regime de urgência, do medicamento Aginasa®, produzido pelos laboratórios Kywoa Hakko/Medac (japonês e alemão), já utilizados no país e sem ressalvas entre a comunidade médica. O CFM e a Associação Médica Brasileira manifestaram-se em apoio ao MPF.
O Ministério Público Federal em Ribeirão Preto (SP) entrou com uma ação, no início deste mês, para que a União recolha imediatamente o medicamento Leuginase®. As supostas irregularidades envolvidas na compra do remédio chinês são objeto de inquérito da Polícia Federal, de acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.
Apesar de todos os protestos, o Ministério da Saúde se mantém irredutível. Em nota à imprensa divulgada no último dia 10, a pasta afirma que “a orientação para a compra da L-asparaginase continua a mesma” e que “entre produtos com as mesmas qualificações será adquirido o de menor preço, exatamente como foi feito na oferta da Leuginase®”.
Hoje, com protocolos modernos, as chances de cura da leucemia linfoide aguda da criança giram ao redor de 80% dos casos. Com a possível redução da ação da Leuginase®, cairão para níveis abaixo de 50%”, projetou a Dra. Silvia Brandalise. “É um crime hediondo deixar de usar um produto seguro por outro desconhecido. Mortes secundárias a recidivas serão registradas”, finalizou a oncologista pediátrica.
O programa “Fantástico”, da Rede Globo, já exibiu algumas reportagens sobre as denúncias, disponíveis nos links abaixo: