O desalinhamento entre os órgãos de saúde e a classe médica no que diz respeito à oferta de tratamento oncológico para os pacientes foi o principal tema de um fórum promovido pelo Instituto Oncoguia, em São Paulo, no fim de fevereiro. O grande volume de ações judiciais exigindo medicamentos e serviços não cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou pelos planos de saúde tem resultado na chamada judicialização da saúde. Leia mais sobre os valores gastos pela União.
“Fala-se muito e de maneira crítica na ‘caneta sagrada’ do médico, como se esta fosse a causa da judicialização. Mas a realidade é que prescrevemos o que temos certeza de ser o melhor para o paciente com câncer. Seria antiético agir de outra maneira”, defendeu o Dr. Rafael Kaliks, diretor científico do Oncoguia e membro da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).
Para a gerente jurídica da SBOC, Dra. Lúcia Freitas, a judicialização da saúde é uma realidade no Brasil uma vez que a Constituição Federal garantiu como cláusula pétrea a universalização do acesso. “Nosso sistema não adota políticas públicas capazes de dar conta deste direito constitucional”, constatou. “Enquanto não tivermos uma gestão eficaz, eficiente e justa, esta é a única alternativa para os pacientes.”
Atuando há 20 anos na Vara da Fazenda Pública de São Paulo, a juíza Gabriella Spaolonzi lamentou que os magistrados das varas estaduais não contem com uma estrutura de apoio científico para embasar suas decisões. Ela também disse sentir falta de contestações mais bem elaboradas por parte do poder público. Muitas vezes, segundo a juíza, o Estado ou o município somente diz, no processo, que não tem verba para oferecer aquele medicamento e sequer aponta alternativas terapêuticas para o paciente. “Nosso desafio é equilibrar as limitações do orçamento do Estado e dos municípios e os direitos dos cidadãos, afastando a má-fé”, resumiu.
Diálogo e alternativas
O Dr. Rafael Kaliks destacou, no fórum, a iniciativa da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica de elaborar diretrizes sobre os principais tipos de câncer, baseadas em evidências científicas e adequadas ao cenário brasileiro, com o objetivo de orientar os médicos em suas condutas e também servir como referência para os juízes conhecerem mais determinados assuntos. “A SBOC está assumindo esta responsabilidade de formatar as diretrizes e atualizá-las periodicamente, porque a oncologia é muito dinâmica. Existem várias novidades revolucionárias, sim, que representam mais tempo de vida e com mais qualidade para os pacientes”, explicou.
Na visão de Gabriella Spaolonzi, o Brasil não deve se conformar em “viver no atraso, com medicamentos que são obsoletos em outros países”. A juíza sugere mais diálogo e articulação entre os envolvidos para que o Ministério Público seja provocado a cobrar soluções de interesse coletivo dos órgãos responsáveis até as últimas instâncias. Assim, o Judiciário passaria a receber ações de cunho mais resolutivo em termos de política pública, e não somente as ações individuais dos pacientes, como ocorre hoje. “É uma questão de ousadia, de inovar, de acreditar. Nem que tudo isso seja levado aos tribunais internacionais”, incentivou.
De acordo com a presidente do Instituto Oncoguia, Luciana Holtz, é difícil entender por que determinadas drogas são concedidas pela via administrativa e outras somente por ações judiciais. “Precisa haver mais transparência sobre o volume de recursos disponíveis para os tratamentos e também devem revistos os modelos de compra”, alertou.
“O que não pode é o paciente ficar nesse fogo cruzado, em que o Estado diz que o tratamento não serve e não precisa ser incorporado, enquanto a comunidade médica está convencida da sua importância e acaba prescrevendo”, ressalta o diretor jurídico do Oncoguia, Tiago Farina Matos. “Se o impedimento é o limite orçamentário, é possível estabelecer parcerias com a indústria farmacêutica para chegar a valores viáveis. Afinal, os fabricantes têm também esta responsabilidade social”, opinou.